Era uma vez um país que tinha um correio.
Era o melhor correio do mundo. O povo todo confiava. Tudo funcionava como um relógio. O presidente da instituição, um sergipano “porreta”, tinha uma máxima que virou um mantra: “correio é horário”.
Os outros países, acostumados com a malemolência brasileira, no começo ficaram pasmados com a transformação daquele correio vira-latas. – Seria o “super-homem”? – Depois, ainda incrédulos, se perguntavam como podia existir um correio daquele calibre no país das maracutaias, da selva amazônica, do sertão profundo, do pantanal intransponível, das estradas intransitáveis? Finalmente, se renderam. No Correio do Brasil, o homem que mandava sabia das coisas. Não demorou e a surpresa virou admiração. O respeito internacional cresceu tanto que logo chamaram aquele mago das cartas e encomendas para mostrar como se faz um correio funcionar.
Em 1984, no Congresso de Hamburgo/Alemanha, o Presidente da ECT, Coronel Eng. Adwaldo Cardoso Botto de Barros foi eleito Diretor Geral (Presidente) da UPU – União Postal Universal. A UPU é o órgão da ONU, com sede em Berna, na Suíça, que regula e organiza os correios de todo o planeta. Era o reconhecimento do mundo pela competente transformação nos Correios do Brasil. E tão operosa foi a gestão do Coronel Botto na UPU que a entidade lhe garantiu a reeleição por mais 5 anos, em 1989.
De minha parte, conheci bem o Coronel Botto. Tudo começou quando ele ainda dirigia o Correio de São Paulo, conduzido ao cargo por indicação pessoal do Presidente Castelo Branco.
Eu, em meus verdes vinte e sete anos, trabalhava na antiga AEG Telefunken, onde atuava na área comercial de equipamentos de rádio comunicação em SSB. Estes rádios funcionavam em ondas curtas e usavam apenas meia banda, o que os tornava mais leves (para a época…) e podiam ser instalados em estações fixas ou em veículos, como caminhonetes, ônibus e embarcações. Também podiam ser usados para fonia ou para telegrafia sem fio. Neste último uso, combinando diversas frequências para compensar variações de propagação, eram tão confiáveis quanto a telegrafia tradicional, com fio de cobre.
Um dia, acho que foi em agosto de 1971, logo cedo, ao chegar no escritório que ficava junto ao parque industrial da empresa, instalado em grandes prédios na Avenida Nossa Sra. do Sabará, em São Paulo, a secretária me passa um telefonema:
– Está no telefone uma pessoa que se diz diretor do Correio e quer falar com alguém da área comercial.
– Ok, pode passar a ligação.
Do outro lado da linha ouvi o Coronel Botto, embora naquele momento não soubesse de quem se tratava.
– Bom dia. Sou Celso Skrabe, consultor da área de rádios SSB.
– Bom dia. Meu nome é Adwaldo Botto, mas todos aqui me conhecem como Coronel Botto. Sou o diretor dos Correios aqui em São Paulo e gostaria de saber se vocês teriam condições de nos emprestar dois rádios SSB no período das férias de verão. Podem ser rádios usados ou de demonstração.
Eu fiquei intrigado. Sabia que o correio não usava rádios para seus serviços de telégrafo. Era uma coisa que já me havia chamado a atenção e que eu atribuía ao nosso atraso tecnológico. Na verdade, eu já tinha fornecido rádios para a Funai, para a FAB e outras instituições que os usavam para comunicação na selva e que, frequentemente, faziam o envio de mensagens da população local. Estas instituições, contudo, reclamavam, já que não tinham infraestrutura para entregar as mensagens aos destinatários. Para fazer o envio precisavam repassar os telegramas para o Correio, acarretando demora desnecessária em mensagens urgentes e ônus para as instituições.
Enfim, fui em frente:
– Bem Coronel, se eu entendi certo, o que o senhor quer é que emprestemos dois rádios SSB no final do ano, de novembro a março. Seria isto?
– Sim. Eu gostaria de instalar um dos rádios em Ubatuba, no litoral, e outro aqui em São Paulo para fazermos um teste para nossa área de telegrafia. Hoje não temos um único telégrafo instalado no litoral paulista. Em nenhuma cidade. E, durante as férias, a população cresce muito e reclama da falta de comunicação. E, para piorar, as cidades do litoral também não tem telefone. Ubatuba tem apenas uns poucos telefones públicos e a espera de uma linha para uma ligação, nos meses de verão, pode levar horas. Ir de ônibus é mais rápido do que telefonar. Na alta estação demora duas, três, as vezes quatro horas.
Era verdade. Quando iniciou o governo militar, em 1964, as comunicações no Brasil eram uma coisa medieval. Este estado de coisas ainda perdurava no início da década de 70. Me pareceu, desde logo, que meu interlocutor queria fazer algo para amenizar isto.
Respondi então:
– Posso verificar se temos equipamentos disponíveis e preciso consultar nossa diretoria para saber se podemos atender. – E lembrei de um detalhe – Se eu conseguir os rádios, o correio já tem as frequências? – No caso, os rádios precisavam de cristais para fazer a modulação. Estes cristais eram feitos sob medida para cada usuário e dependiam de licença do DENTEL.
O Coronel Botto, então, confidenciou:
– Olha, eu preciso que vocês me emprestem também as frequências. O correio não tem frequências autorizadas pelo DENTEL para uso em telegrafia e eu, como diretor regional, não tenho autoridade para solicitá-las. Minha ideia é que, se conseguirmos fazer uma conexão de telégrafo sem fio bem sucedida, talvez eu possa quebrar a resistência contra o uso de radiotelegrafia no correio e argumentar para a liberação de seu uso com nossa presidência. Se conseguir demonstrar que a radiotelegrafia funciona acredito que possamos comprar rádios para todas as localidades do litoral paulista hoje sem telégrafo. Talvez possamos comprar rádios até para outras praças não atendidas.
Esta questão das frequências me parecia mais complicada do que conseguir os dois rádios. Duvidava que o Dr. Cardoso, nosso presidente, fosse aceitar que instalássemos frequências de teste em rádios que seriam usados para telegrafia pelos correios. A empresa era alemã e seguia normas estritas do que se podia, ou não, fazer. E como o empréstimo de frequências não estava previsto nas nossas autorizações do DENTEL, dificilmente seriam autorizadas. Não era formalmente proibido, mas ficava no limbo legal e eu teria que consultar nossa assessoria jurídica. Traduzindo: era proibido tudo o que não estivesse formalmente permitido.
Aí resolvi pedir uns dias para verificar meios de atender ao que o coronel me solicitava. E, como estávamos em pleno regime militar, me atrevi a perguntar:
– Coronel, o senhor, com seus contatos no governo, não teria meios de liberar umas duas ou três frequências junto ao DENTEL, mesmo que em caráter provisório?
A resposta do coronel foi direta:
– Exatamente aí é que está o problema. Falar em telegrafia por ondas curtas aqui no Correio é tabu. Não é que eles desconheçam uma tecnologia que, desde antes da guerra, está em uso em todo o planeta. Mas tem muito dinheiro envolvido nas redes telegráficas de cobre. E tem muita gente lucrando com elas. Assim, jamais eu conseguiria formalizar um pedido de frequências ao DENTEL. Eu não consigo autorização nem mesmo para pedir frequências provisórias. Ao contrário, seu eu mexer errado, posso por tudo a perder e ser proibido expressamente de testar o uso dos rádios. Aí meu projeto vira fumaça e você perde a chance de vender rádios para o Correio. Venha me fazer uma visita eu explico o que está acontecendo.
Caramba, pensei com os meus botões, aí tem algum mistério da “mão invisível do mercado”. Não a mão invisível descrita por Adam Smith, claro, mas aquela outra, bem brasileira, inventada pelo capeta!
Foi a esta altura que tive um estalo e liguei as pontas. Ocorre que, por uma destas coincidências que mostram que Deus ainda não tinha desistido do Brasil, eu havia acabo de fechar a venda de uma rede de rádios SSB para a Sudelpa, a Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista. Precisamente a agencia estadual criada para fomentar o desenvolvimento do litoral de São Paulo, onde, claro, se situa a cidade de Ubatuba. Não era preciso ter o QI do Einstein para perceber que havia uma coincidência de interesses: o Correio queria instalar um telégrafo em Ubatuba e a Sudelpa ficaria muito feliz se contribuísse para a instalação do telégrafo em Ubatuba. Afinal, o que mais poderia contribuir para o desenvolvimento da região a curto prazo se não instalar o telégrafo dos correios na época das férias que se avizinhavam? E, ainda mais, a um custo praticamente zero?
Ademais, a Sudelpa tinha as frequências de SSB já concedidas e até já tinha recebido alguns dos rádio comprados. Todos, entretanto, da versão móvel, instalados nas caminhonetas, que foi a prioridade solicitada. A conclusão lógica saltava aos olhos: se o governo do estado cedesse os rádios e emprestasse uma ou duas das suas frequências teríamos resolvido o problema. Ubatuba teria telégrafo funcionando na alta estação e o Coronel Botto poderia mostrar que a solução funcionava.
Por um momento pensei em consultar informalmente o superintendente da Sudelpa, Antônio Castilho, sobre a ideia, mas achei que deveria antes saber como o Coronel Botto veria esta alternativa de solução. Liguei marcando uma visita e, no dia seguinte, na hora marcada, (sete da manhã!) fui vista-lo em seu escritório, no antigo prédio dos Correios, no início da Avenida São João.
Na manhã friorenta do dia seguinte o Coronel me recebeu em sua sala e, após uma conversa introdutória, foi direto ao assunto:
– A direção nacional dos Correios fica no Rio de Janeiro. E lá, na alta direção, existe uma máfia dos fios de cobre. O presidente é um militar da reserva, mas de patente maior que a minha, e só posso supor que ele também está envolvido no esquema. O pessoal lá do Rio sabe que se ficar provado que os rádios de ondas curtas em SSB podem atender nossa necessidade com telegrafia sem fio, na mesma hora acaba todo o negócio deles e, junto, terminam as propinas milionárias que eles recebem. O esquema é perverso porque o custo de implantar o serviço de telegrafo com fio tradicional é astronômico. Para qualquer localidade são quilômetros e quilômetros de fios e milhares de postes a serem instalados. Além do sistema depender de conexões e triangulações intermináveis, com o repasse de telegramas. Chega a ser ridículo o número de erros nas mensagens repassadas. Sem falar no roubo constante dos fios, fato que requer reposição constante e consome todos os recursos de expansão. E sem dinheiro expansão não há. Desde que estou aqui não implantamos nenhuma nova estação no estado. Por isto, pelo sistema tradicional, o litoral paulista vai levar ainda muito anos para receber o serviço de telégrafo. Infelizmente, para os dirigentes da estatal nada disto importa. Daí meu cuidado em tentar uma operação discreta. Precisamos mudar este estado de coisas, mas se o pessoal da máfia do cobre descobrir o que estou tramando, me impedem ou me demitem na hora.
Ainda retruquei:
– Mas coronel, sendo o senhor indicado para a Superintendência dos Correios em São Paulo pelo presidente não seria o caso de recorrer a ele?
– Eu fui indicado pelo Castelo Branco. Tenho bons amigos no governo, mas não tenho a mesma intimidade com o presidente atual. E depois, a situação não é tão simples. Esse pessoal da máfia tem controle sobre a empresa e seus projetos e existem muitos interesses envolvidos. O sistema de telegrafia sempre foi a vaca leiteira da corrupção aqui nos Correios e tem muita gente mamando. Eles não vão largar o osso assim fácil. Sei que tenho a confiança do governo, fui colocado aqui pelo Presidente Castelo Branco, mas prefiro agir de modo a criar fatos consumados e usar a evidencia para forçar as mudanças. Seria desperdiçar a janela de oportunidade que temos se abrir uma guerra interna, um conflito em que a causa maior dos correios e das comunicações pode ser sacrificada em meio a uma luta politica.
Agora dava para entender o dilema do Coronel Botto. Em resumo, se ele tentasse furar o bloqueio da máfia do cobre de peito aberto, possivelmente seria demitido. Mesmo com o ministro e o presidente da República desejando ficar ao seu lado, a realidade é que havia todo um jogo de interesses políticos e militares conspirando contra ele.
A solução imaginada pelo Coronel Botto, assim, era estrategicamente brilhante. Se fizesse funcionar satisfatoriamente uma estação de radio telégrafo no litoral paulista, uma só que fosse, abriria uma brecha na represa da corrupção e a pressão da demanda iria forçar a mudança na política e alterar o jogo. De fato, como alguém iria se colocar no caminho de uma solução que custava menos de 1% do método tradicional, era muito mais versátil, tinha implantação rápida (dias ao invés de anos) e era altamente lucrativa?
O Brasil do início dos anos 70 ainda estava em lua de mel com o governo militar. Os velhos cabides de antes da revolução, como os Correios, esperneavam e resistiam tanto quanto podiam, mas, no caso dos correios, o fim do empreguismo e da corrupção estava à vista e a era de ouro estava em marcha. O coronel Botto era um destes homens providenciais, o homem certo na hora certa. Engenheiro, bem preparado, íntegro, patriota, ansiava por melhores comunicações para o país e sabia que os correios precisavam dos recursos a serem gerados pela expansão dos serviços de telégrafo. O ponto chave de seu plano, contudo, era fazer as evidências falarem por si sós. E para conseguir isto era preciso, como repetia sempre, “navegar abaixo da linha do radar”.
O coronel, a esta altura da nossa conversa, me convidou para ir tomar um café em uma padaria ao lado. O café aos funcionários fora reduzido e só seria servido as dez horas. Enquanto sorvíamos o café cheiroso daquelas máquinas “Monarca”, típicas dos bares paulistas da época, expliquei a ideia de falarmos com a Sudelpa e o governo paulista para atendermos seu plano de conseguir o empréstimo de dois rádios SSB equipados com as frequências. O coronel ouvira falar da Sudelpa, a Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista, mas não tinha conhecimento exato de sua função. Quando terminei de explicar o que aquela instituição fazia e como poderia se associar ao seu plano para levar telegrafia sem fio ao litoral de São Paulo, ele virou um dínamo de entusiasmo. Seus olhos brilhavam:
– Se a Sudelpa ajudar os correios a operação está garantida. Ubatuba vai ter telégrafo e, depois, vamos conectar todo o litoral.
Em face da manifestação de entusiasmo nem precisei perguntar: a autorização para falar com a Sudelpa estava concedida.
A confiança do Coronel Botto era uma coisa contagiante. Em geral comedido nos gestos, no entusiasmo do momento ele tirava e colocava os óculos sem parar e gesticulava como um napolitano na Festa di San Gennaro.
Assim que nos despedimos peguei meu fusca azul, estacionado ali nas imediações, e subi a Avenida Angélica, onde ficava a Sudelpa.
Me dirigi direto à secretária e pedi para falar com o Dr. Castilho.
A moça me olhou com se eu tivesse chegado de Marte.
– O senhor tem hora marcada? O Dr. Castilho deve estar chegando e já tem um pessoal esperando por ele para uma reunião.
Eu nem precisei argumentar. O superintendente estava entrando e, ao me ver, veio me cumprimentar com aquele ar de pressa educada. Estava esbaforido e em cima da hora.
Antes que me descartasse fui logo falando:
– Dr. Castilho, sei de sua reunião e não quero atrapalhar, mas o assunto que tenho é uma oportunidade única e eu precisaria dois minutinhos de sua atenção reservada.
Achei que ele me mandaria voltar mais tarde, mas eu ainda devia estar sob a influência do entusiasmo do Coronel Botto, que era uma coisa contagiosa, e o Dr. Castilho resolveu me conceder os dois minutinhos.
Fomos a uma sala contígua e eu expliquei resumidamente o que tinha a dizer. Os olhos do Dr. Castilho quase saltaram das órbitas.
– Mas esta é uma oportunidade fantástica! Eu estava precisamente procurando maneiras de mostrar serviço lá na região. Vamos topar com certeza. Pode contar comigo.
Eu me apressei a marcar um próximo passo:
– O senhor estaria disposto a ter um encontro pessoal com o Coronel Botto para conversar?
– Sem dúvida nenhuma. E gostaria que fosse o quanto antes. Acontece que eu tenho uma reunião com o secretario nos próximos dias e gostaria de levar a ele esta ideia já mais elaborada.
– Se o senhor me autoriza, ligo agora de seu gabinete e falo com o Coronel e vejo quando podemos marcar.
Enquanto o Superintendente entrava em sua reunião liguei para o Coronel. Expliquei o resultado do contato e o desejo do Dr. Castilho de fazer a reunião o mais rápido possível.
O coronel respondeu sem titubear um segundo:
– O mais rápido possível é agora, mas vamos deixar para depois do almoço. Se ele puder me receber, podemos marcar aí as duas horas da tarde.
– Se o senhor puder esperar na linha, vou confirmar com o Dr. Castilho.
Fiz um bilhetinho e pedi para a secretária levar na reunião e confirmar o horário com o superintendente. A resposta veio escrita em maiúsculas no bilhete: “ESTÁ MARCADO”.
Voltei ao telefone:
– Coronel, a reunião está confirmada para hoje, as duas horas da tarde.
– Ótimo, ótimo. Vou cancelar umas coisas que tinha marcado por aqui e chego aí as duas horas.
Acabei ficando por ali. Precisava fazer hora. Comprei um jornal, fui almoçar em alguma espelunca da Angélica, que meu tíquete refeição era igual ao da peãozada da fábrica, e voltei cedo ao escritório do presidente da Sudelpa.
Dez para as duas chegou o Coronel Botto. Vinha acompanhado de um engenheiro a quem incumbiria cuidar dos aspectos técnicos.
Na reunião os dois homens de ação se entenderam de imediato. Sem delongas inúteis, debateram as alternativas. Castilho disse que, caso fossemos usar o rádio das caminhonetes, ele poderia ceder até umas quatro ou cinco para o período das férias daquele ano. Além de Ubatuba poderiam ser atendidas outras cidades. Inclusive Registro, cidade pela qual Castilho tinha grande consideração. Para a estação no correio central eu prometi antecipar a entrega de um rádio fixo e instalar a antena no telhado da agencia central. A reunião do Superintendente da Sudelpa com o Secretário se daria em uma semana e o Dr. Castilho queria um teste do funcionamento da solução para que o assunto pudesse ser levado ao Governador Laudo Natel.
Ao que eu lembro, a reunião se daria na quarta feira da semana seguinte. Então combinamos fazer um teste logo na segunda feira, com uma caminhonete com rádio posicionada próximo a agencia dos correios em Ubatuba e a estação fixa instalada em uma unidade de Assistência Técnica da Telefunken localizada na Avenida Pacaembu, a uma quadra da Avenida São João e a uns dois quilômetros em linha reta da agencia dos correios. Dada a precariedade do tempo, a antena seria fixada provisoriamente do lado de fora, estendida entre duas janelas.
Tudo pronto, uma caminhonete instalada em Ubatuba e o rádio na Barra Funda instalado, as nove horas começa o teste para valer. Os dois pontos já tinham feito contatos bem sucedidos, mas agora era oficial. Estavam na sala, em São Paulo, o coronel Botto, seu engenheiro, o Dr. Castilho, um engenheiro da Polícia Militar de São Paulo especialista em comunicações, eu e meu chefe na Telefunken, Wayland Coats além, obviamente, de um operador do rádio e do telegrafista do correio. Nove em ponto, o rádio ligado, entra a voz do operador de Ubatuba, falando da caminhonete.
– QRA Ubatuba – QAP (Estação na escuta).
O sinal vinha claro e límpido, tanto quanto era possível, considerando que o SSB aproveita só meia banda. Mas a emoção tomou conta da sala.
O operador de São Paulo responde:
– QRA estação São Paulo. Sinal com clareza cinco. Repito, clareza cinco.
Nem precisava repetir. Óbvio que, se era clareza cinco é porque era clareza cinco. A comunicação era limpa e perfeita.
Em seguida São Paulo inicia o teste para valer:
– Segue QTC em Morse.
E ambos os telegrafistas fizeram a troca de mensagens em condições tão boas quanto o fariam no telégrafo com fio. Bastou uma tentativa. E até houve espaço para o humor:
– Favor QRQ (transmita mais depressa…)
Terminada a troca de mensagens, todos na sala sentiram a mesma emoção que devem ter sentido os cariocas que testemunharem a iluminação do Corcovado, em 12 de outubro de 1931, quando, numa cerimônia organizada pelo jornalista Assis Chateaubriand e presidida pelo Cardeal do Rio de Janeiro, Dom Sebastião Paes Leme (filho de Espírito Santo do Pinhal) e pelo Presidente Getúlio Vargas, o cientista italiano Guglielmo Marconi, inventor do rádio, e o Papa, acionaram um dispositivo que enviou um sinal de rádio que iluminou o Cristo Redentor. A iluminação que brilhou no céu aconteceu no início da noite, as 19 horas e quinze minutos e assim foi relatada por Marconi, em sua biografia escrita por Filippo Garozzo:
“Então todos ficaram olhando para o morro, esperando o milagre a ser produzido pelo homem. E o milagre aconteceu pontualmente. O Papa e Marconi, em Roma, apertaram uma chave de transmissor e um sinal partiu rápido da Cidade Eterna, deslizou sobre o Atlântico mais velozmente que o relâmpago, e atingiu o Cristo Redentor, construído sobre o Morro do Corcovado, na Baía de São Sebastião do Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa. E o Cristo, de repente, ficou tão resplandecente e brilhante de luz que mais se assemelhava a uma festa! Parecia até outro Cristo, risonho e mais bonito, agora que estava iluminado e inaugurado pela mão do Santo Padre e pelo gênio de Marconi.”
O espantoso desta história é que o corrupto Correio brasileiro da época, mesmo depois de atravessar quarenta anos e uma guerra mundial, ainda enfiava a cabeça na areia, ainda parecia não ter tomado conhecimento das ondas de rádio e se aferrava aos fios de cobre.
De toda forma, após o teste entre o litoral e a capital, estava resolvida a questão técnica. Faltava, agora, resolver a questão política.
O Dr. Castilho levou os laudos do teste para o Secretário, que, junto com o Superintendente da Sudelpa, os levou ao Governador Laudo Natel. Esta reunião não assisti. Mas soube dos resultados depois.
Segundo o relato do Dr. Castilho, o governador ouviu todo o relato e deu uma olhada nos laudos para então dizer:
– Os senhores devem estar brincando comigo. Como eu posso justificar para a opinião publica que vamos beneficiar apenas uma cidade em detrimento das outras?
O secretário e o Dr. Castilho tentaram justificar:
– Desculpe, governador, mas nossa proposta é emprestar os rádios para atender um pedido do Correio e começar fazendo um teste. Primeiro seria Ubatuba, mas depois o correio nos assegurou que vai poder estender o serviço para as demais localidades…
O governador teria ficado impaciente:
– Quanto custa cada estação? – Quis saber o governador.
– Metade do custo de um fusca, foi como o Dr. Castilho teria respondido.
– E quantos postos de correio existem no litoral?
– Cerca de vinte localidades. – Teria sido a resposta do Dr, Castilho.
Laudo Natel, então, teria resolvido a questão:
– Se este é o número vamos fazer nossa parte. Vamos formalizar logo um convênio doando os rádios ao Correio e oferecermos telégrafo no litoral paulista ainda neste verão. Vamos comprar os rádios e fazer uma festa nas vinte localidades logo que começar a alta temporada.
– Mas será que teremos tempo? – Quis saber o Secretário.
– Os senhores já devem conhecer minha frase preferida: “fazer o possível agora e o impossível depois.” Se precisar, o senhor empresta suas caminhonetes. Então vamos logo adquirir os tais vinte rádios e providenciar imediatamente o convênio para oficializar a doação da Sudelpa para os correios.
E assim foi feito. O governo de Laudo Natel celebrou o convênio entre a Sudelpa – Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista e a ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, formalizou a doação dos rádios – como ficou registrado no flagrante acima – e inaugurou os novos pontos de telégrafo naquela temporada de praia com uma grande festa. E todos foram felizes até quando uma nova geração de corruptos ressurgiu nos governos Lula e Dilma e passou a meter a mã0 e novamente avacalhar com os correios.
PS.
1) – Os rádios foram entregues a tempo mas as frequências estavam demorando perigosamente. O governador, por seu turno, queria que os rádios fossem instalados já com as frequências definitivas. Acontece que o Dentel estava criando problemas. Contaram-me que o governador, em raro momento de irritação, teria ligado diretamente para o Presidente da República, o General Médici. Como por encanto, as frequências vieram rapidinho e a tempo.
2) – Quando a máfia do cobre e a alta direção dos correios soube do “golpe baixo” do Coronel Botto ficou espumando de raiva e foi reclamar com o presidente. Pensaram que iam tosquiar o coronel Botto mas saíram tosquiados. A solução foi típica do governo militar: a diretoria corrupta foi demitida sem delongas e – surpresa! – sabem quem foi escolhido como o novo presidente da Empresa Brasileira de Correios? Ele mesmo, o Coronel Adwaldo Cardoso Botto de Barros, o sergipano porreta, o Coronel Engenheiro do Exército Brasileiro que mais entendia de comunicações e um personagem que nos enche de orgulho e que marcou seu nome na história como o responsável pela criação do serviço de SEDEX, pela criação do POSTALIS e pela era de ouro do correios do Brasil. De sobra, ainda dirigiu a renovação tecnológica dos correios de todo o planeta. O resto da história vocês já conhecem.
3) – Muitos anos depois reencontrei o Coronel Botto no Aeroporto de Guarulhos. Ele já era, então, presidente da UPU – União Postal Universal. Ao me ver, o coronel Botto veio ao meu encontro e fez questão de me convidar para um café. Nos quinze minutos que faltavam para seu horário de embarque, relembramos o episódio dos rádios e dos “telégrafos de férias”, episódio que ele lembrava com carinho e via como “a mudança da maré” de sua carreira nos Correios, que presidiu por 12 anos, e, por extensão, de seu papel como líder mundial dos correios por oito anos. Fez-me um convite para visitá-lo na Suíça, mas vai ter que ficar para uma outra vida. Nunca mais o vi, porém tampouco o esqueci. E foi com grande tristeza que li a notícia de sua morte em janeiro de 2015, quando nos deixou, aos 90 anos de idade.
Homens como ele temos poucos e nos fazem muita falta. Que seu legado de competência e integridade frutifique e que Deus o tenha.
Celso Skrabe